18 de mai. de 2023

O que Vettius Valens buscava na astrologia?

Assim como centenas de estudantes de astrologia, eu me interessei pela obra de Vettius Valens devido a muitas de suas técnicas, que não eram encontradas nas obras de nenhum outro autor - fruto da interrupção na transmissão do conhecimento contido na sua obra, a Antologia, ao longo dos séculos. 

Sabemos que os árabes tiveram acesso a Valens, chamando-o de Walis. Sua Antologia era por eles chamada de Bizidaj; entretanto, dado o comportamento convencional dos autores medievais de astrologia de se transmitir quase tudo dos seus antecessores (nem sempre dando o devido crédito), é de se espantar que muitas técnicas funcionais de Valens não tenham sido retransmitidas nas obras de Māshā'allāh, Abū Maʿšar e Sahl Ibn Bišr. Muito pouco do que se lê na Antologia pode ser encontrado nos textos destes astrólogos, e as razões para isso ainda me são desconhecidas.

Toda essa mística em torno de técnicas que parecem ter ficado restritas ao século II d.C. faz com que o interesse nelas seja ainda maior. Com isso, outros aspectos interessantes da Antologia são deixados de lado nas discussões quotidianas de astrólogos na internet. É um desses aspectos que pretendo reproduzir neste artigo.

Além das técnicas únicas na literatura astrológica, a Antologia tem uma peculiaridade que salta aos olhos, por se contrastar com o que se vê comumente na maioria dos livros de astrologia helenísticos e medievais: Valens dá dezenas de exemplos das técnicas em mapas de anônimos. 

O livro Greek Horoscopes consiste numa coletânea que inclui os mapas citados na Antologia, mas também dezenas de mapas interpretados por astrólogos anônimos, em pergaminhos esparsos, que não fazem parte de nenhuma obra específica. Os temas desses mapas variam desde breves interpretações natais até interrogações (horárias) e astrologia eletiva. Entretanto, a prática de se incluir exemplos de interpretação nos livros de teoria astrológica é um expediente pouco frequente entre os autores, e essa "cultura de não exemplificação" se estendeu até o renascimento, com gratas exceções, como os três volumes do Christian Astrology de William Lilly e nos últimos livros do Astrologia Gallica de Morin de Villefranche. 

Os exemplos dados por Valens mostram uma outra peculiaridade da sua obra: seus consulentes eram pessoas comuns, de uma classe média egípcia, quiçá mediterrânea, do século II d.C, o que constrasta com os clientes reais e nobres dos astrólogos medievais e renascentistas. Sabemos que os clientes de Valens eram de uma classe média não apenas por se tomar conhecimento dos seus cargos (escribas, superintendentes, etc), mas também pela grande mobilidade social aos quais estavam submetidos, o que se pode notar nas descrições como esta:

Outro exemplo: sol, Mercúrio em Capricórnio, lua, Marte, Ascendente em Touro, Saturno em Escorpião, Júpiter em Câncer, Vênus em Peixes, clima 6. Em seu 30º ano, ele escapou da escravidão, cometeu muitos roubos, evitou a captura por um curto período de tempo, mas foi pego no mesmo ano.

A mobilidade social pode ser notada no trecho "escapou da escravidão". Na sociedade helênica, pessoas que não conseguiam quitar débitos ou prisioneiros de guerra podiam se tornar escravos. Por outro lado, atendendo a certas "condiçõe$", poderiam se tornar homens livres novamente. 

Talvez muitos dos exemplos dados por Valens não tenham sido de clientes, mas de pessoas comuns que tiveram destinos peculiares e considerados interessantes pelo autor. De qualquer forma, se a clientela de Valens fosse constituída apenas por reis e nobres, a busca por exemplos como este seria desnecessária, já que a nobreza de uma sociedade tende a passar por problemas diferentes da maioria da população, exigindo uma percepção diferente do astrólogo.

Existe uma outra característica de Valens que chama atenção e que talvez tenha ressoado na nossa mentalidade pós-moderna, fazendo com que ele chame mais a atenção dos astrólogos contemporâneos do que outros autores. Vivemos uma época extremamente materialista, onde bens materiais, prestígio e posição social são coisas muito valorizadas. Tive de ler a obra de Valens por mais de quinze anos para finalmente verbalizar um certo incômodo que sentia ao ler certas passagens: o autor é extremamente engajado em detectar e caracterizar o impacto dos planetas na mobilidade social do consulente, ignorando manifestações planetárias que não atendam a tal propósito.

Valens é obcecado com os altos e baixos que o destino proporcionava às gentes de sua época, e toda sua leitura consistia em representar isso no mapa. Para mim, este é mais um argumento a favor dele ter sido um astrólogo praticante, "das trincheiras", que desejava responder aos anseios de uma população ávida por melhorias de vida, e que a substancial maioria dos exemplos de mapas da Antologia são de clientes. 

Se Valens não fosse um astrólogo praticante, no que ele estaria interessado? Sei que exercícios de imaginação como estes podem ser estéreis, mas temos um exemplo muito claro de como ele poderia ter sido se fosse um homem mais dado a teoria do que a prática. Ironicamente, este outro exemplo, contemporâneo de Valens, pode ser considerado o oposto dele em vários aspectos. Sua obra teve uma continuidade muito maior na história do pensamento astrólogico; seus livros não contam com nenhum exemplo; embora na sua obra seja citado o impacto da astrologia na mobilidade social, sua preocupação astrológica maior era usar a astrologia para detectar as oscilações na natureza, a geração e corrupção do mundo sublunar; esse "astrólogo" (se é que tenha feito algum mapa na vida) é ninguém menos que Ptolomeu, autor do Tetrabiblos. 

Para demonstrar a diferença básica entre a Antologia e o Tetrabiblos, pretendo sintetizar a essência de cada obra com um exemplo. Suponha que você tenha ♄ na Casa 11 do seu mapa natal. A leitura de Valens lhe obrigaria a ver se ♄ rege o Ascendente ou o Lote da Fortuna ou se ele é regente da triplicidade do luminar que preside o séquito do seu mapa (Sol em mapas diurnos, Lua em mapas noturnos). Baseado nestas informações, Valens lhe diria que o seu Saturno indica ou não prestígio e avanço na tão falada mobilidade social deste artigo. 

Por outro lado, um astrólogo mais influenciado por Ptolomeu estaria interessado em como este ♄ representa os significados da casa 11, a saber, seus amigos ou grupos dos quais você faça parte. Diria que ♄ indica amigos mais tristes, pessoas que se vestem de preto, humildes, rebaixadas, invejosas. Mas este ♄ também teria papeis variados na sua vida, a depender do que ele governasse. Se ele tivesse autoridade sobre a ☽ e sobre ☿, seria o regente das suas qualidades da alma, e ter um papel de representar seu comportamento. Se ele fosse governante das doenças, indicaria que tipo mais comum de doenças você teria. Para Ptolomeu, este ♄ poderia ter papeis variados na sua vida, mesmo estando na Casa 11, que representa seus amigos. Todas essas informações são interessantes e podem ser úteis, mas nenhuma delas se traduz em alguma esperança de você se dar bem na vida. 

Basicamente, a astrologia ptolomaica tende a ser mais holística do que a astrologia encontrada em Valens. Emprego o termo holístico no sentido de indicar a vida como um todo, levando em conta temperamento, personalidade, saúde, doença, circunstâncias sociais, etc. 

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