5 de jun. de 2025

O Julgamento de Alan Leo e a Astrologia que Deixou de Prever o Futuro

Hoje, quando alguém fala em horóscopo, a maioria das pessoas pensa naquela coluna diária de jornal ou aplicativo que diz como será o seu dia com base no signo solar. Mas por trás dessa astrologia "de entretenimento" existe uma história bem mais profunda — e até um tanto dramática. E ela passa diretamente por um nome: Alan Leo.

Se você nunca ouviu falar dele, não se preocupe. Ele é praticamente o “pai invisível” da astrologia moderna, o responsável por tirar a astrologia do campo das previsões fatalistas e colocá-la no universo do autoconhecimento. Só que essa mudança não foi por acaso — foi consequência de um processo judicial real, movido contra ele em plena Londres do início do século XX.

Mas vamos por partes. As coisas não nascem "do nada" e uma longa cadeia de eventos merece ser destrinchada para entendermos aonde chegamos hoje.

Tudo começa na Inglaterra.

Breve história da Astrologia Inglesa

Durante séculos, astrólogos ingleses atuaram livremente. Desde a Idade Média, passando pelos tempos elisabetanos, era comum ver previsões em almanaques, astrólogos trabalhando com médicos e até mesmo influenciando decisões políticas. O protestantismo tinha tudo para não tolerar a astrologia, mas não foi isso que aconteceu.

Henrique VIII rompe com Roma e cria a Igreja Anglicana (1534). Mesmo assim, a astrologia continua firme e forte, principalmente nas cortes e universidades. Astrólogos como John Dee (conselheiro de Elizabeth I) eram figuras respeitadíssimas, misturando astrologia, alquimia e matemática. A astrologia era considerada parte do saber erudito, usada por médicos, nobres e militares. Mesmo com o protestantismo oficial, não houve perseguição direta à astrologia nessa fase. Ela era útil demais — inclusive usada para prever batalhas e nas decisões de Estado.

Durante as Guerras Civis Inglesas (1642–1651), astrólogos como William Lilly faziam previsões políticas nos panfletos. Lilly, inclusive, previu o grande incêndio de Londres (1666). A astrologia ainda era tolerada, mas começou a ser vista como “arma ideológica perigosa”. Com o avanço do racionalismo científico (Boyle, Newton) e do protestantismo puritano, a astrologia passou a ser atacada como superstição vulgar. Ainda havia espaço, mas começava uma guinada de desconfiança. A astrologia deixa de ser “ciência” e vira “crendice”.

Século XVIII – Iluminismo e repressão cultural

A influência do deísmo, do empirismo e do racionalismo protestante coloca a astrologia no mesmo saco que bruxaria e alquimia. A elite protestante vê a astrologia como resquício da ignorância medieval. Surge uma onda de leis contra fraudes, imposturas e charlatanismo, principalmente no século XIX — preparando o terreno para o Vagrancy Act de 1824. 

"Vagrancy Act" ou "Lei da Vadiagem"

Em 1824, o Reino Unido criou o Vagrancy Act — uma lei para combater a vadiagem, mendicância e práticas que, segundo o governo, ameaçavam a ordem pública. E adivinha o que entrava nesse balaio? Cartomantes, videntes, médiuns e... astrólogos que afirmassem prever o futuro. A lógica era simples (e cruel): se você dizia saber o que ia acontecer na vida de alguém, mesmo sem enganar ou causar prejuízo, isso já era ilegal. 

Perceba implícito aqui o teor cristão da lei. O VA foi criado antes da era vitoriana e do movimento positivista surgirem. Portanto, não podemos dizer que o moralismo vitoriano e o ideário positivista foram motivações para sua criação. O que nos é certo é que a Bíblia condena qualquer tipo de adivinhação, e isso já era sabido de longa data. Soma-se a isso o descrédito que a astrologia vinha recebendo desde o advento do iluminismo, e temos dois impulsionadores bem convincentes para entendermos a promulgação da lei. 

Mas não haveria uma lei se não houvesse uma motivação econômica. O dinheiro manda e cria novos bodes expiatórios cada dia que passa.

O Vagrancy Act é uma daquelas canetadas inúteis típicas dos governos para tentar resolver um problema de cima pra baixo, o que nunca dá certo. Visava pressionar o povo a largar os "subempregos" (na falta de um nome melhor) para procurarem as fábricas. Entretanto, isso saiu como amarrar o poste ao cachorro: as pessoas não estavam "vadiando" porque não queriam trabalhar: elas procuravam emprego, mas não havia!

O Vagrancy Act era uma resposta estatal ao cenário socioeconômico que se desenhava na Inglaterra do século XIX pós guerras Napoleônicas (1815 em diante). A Inglaterra havia saído vitoriosa, mas devastada economicamente. Milhares de soldados voltaram do front sem emprego, sem terra e sem assistência. O país foi tomado por desemprego em massa, aumento da pobreza e falta de oportunidades reais para as classes baixas. A falta de oportunidades instigou toda a sorte de esforços por parte da massa para sobreviver, sendo as formas de adivinhação algumas delas. 

A ocorrência do Vagrancy Act é um flagrante que a astrologia inglesa era popular, bem mais aproximada das classes menos favorecidas. Ao contrário do que vemos alguns astrólogos repetindo por aí (eu incluso), a elitização da astrologia é verdadeira apenas na Idade Média. Desde sua gênese, durante o período helenístico (séculos II a.C.  a VI d.C.) ela já era mais próxima das massas - vide o grande número de registros de mapas com biografias de personagens cujas vidas eram cheias de revezes, como pessoas que se tornavam escravas por dívidas.

O nascimento de Alan Leo

Alan Leo nasceu em 1860, numa Londres onde a astrologia já estava meio escondida, mas viva. Ele cresceu, estudou, se encantou com a Teosofia, começou a publicar livros e fundou uma revista chamada Modern Astrology. Seu objetivo era claro: popularizar a astrologia como uma ciência espiritual, ligada à evolução da alma e à psicologia.

E conseguiu. Em pouco tempo, Leo vendia milhares de mapas natais, fazia horóscopos por correspondência e reunia multidões interessadas em astrologia. Foi aí que chamou atenção demais.

O primeiro processo – 1914

Em 1914, Alan Leo foi processado pela primeira vez. O motivo? Enviar previsões por escrito para um cliente. O Vagrancy Act já estava em vigor há 90 anos. 

Ele foi absolvido, com um argumento engenhoso: “Eu não estou prevendo o futuro. Estou descrevendo tendências de caráter.”

Essa vitória abriu uma brecha e plantou a semente da astrologia psicológica. Mas o Estado britânico não esqueceu.

O segundo processo – 1917

Três anos depois, ele caiu numa armadilha. Um agente da polícia disfarçado encomendou um mapa astral. Alan Leo respondeu com uma frase que dizia algo como:

“Há a possibilidade de uma perda familiar por morte.”

Mesmo sendo uma previsão genérica, isso bastou. Ele foi condenado sob o mesmo Vagrancy Act de 1824 — e multado.

Curiosamente, ninguém reclamou da previsão. Não houve cliente ofendido. Foi uma ação movida pelo próprio Estado. O julgamento não julgou se ele estava certo ou errado, apenas o fato de ele ter dito algo sobre o futuro. E nunca saberemos se esse policial perdeu ou não um parente à época.

A virada histórica

Depois disso, Leo entendeu: se quisesse que a astrologia sobrevivesse, ela teria que mudar de roupa. Nada mais de previsão direta, nada mais de “vai acontecer isso ou aquilo”. Em vez disso, passou a focar em:

  • Potencialidades do mapa;

  • Traços de personalidade;

  • Caminhos de desenvolvimento da alma.

Essa reformulação abriu caminho para toda a astrologia que dominaria o século XX: humanista, psicológica, voltada para o autoconhecimento. Gente como Dane Rudhyar, Carl Jung e Liz Greene beberiam dessa nova fonte. Incluindo horóscopos de jornal - algo que merece um texto à parte.

A astrologia "tradicional" também tem instrumentos para a análise do temperamento, comportamento e motivações do indivíduo, mas o faz de maneira mais circunscrita a um ou dois significadores planetários. Enquanto a astrologia tradicional considera um ou dois planetas como significantes psicológicos, a astrologia moderna converteu o mapa inteiro como um representante da psique.

O legado de Alan Leo

Não podemos afirmar que Alan Leo tenha morrido por causa da condenação. Entretanto, é tentador pensar que o segundo processo o estressou suficientemente para que, no mesmo ano, morresse de AVC. Vítima das circunstâncias, ele deixou um legado que, a meu ver, considero infeliz: a limitação da arte astrológica no imaginário coletivo. 

A mudança que ele promoveu moldou tudo o que a astrologia viria a ser no século XX e XXI. Ele foi acusado, não porque errou uma previsão, mas porque ousou praticar astrologia publicamente num mundo que ainda a via como superstição perigosa. E foi justamente essa perseguição que obrigou a astrologia a se reinventar. 

E foi uma reinvenção varrendo muita coisa proveitosa pra debaixo de um tapete que Olivia Barclay, John Frawley, Deborah Houlding e tantos outros astrólogos britânicos (e não britânicos também) insistiram em levantar. E levantam até hoje.

Astrologia é muito mais do que uma leitura comportamental ou uma ferramenta para desenvolvimento pessoal.

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