14 de abr. de 2025

A Estrela Que Se Tinge de Branco: Reflexão sobre Anúbio e as Horas Planetárias

No primeiro fragmento do Carmen Astrologicum Elegiacum, Anúbio nos oferece uma imagem de rara beleza e ambiguidade simbólica:

Ἀστὴρ ἐν ὥρῃ λευκῇ χρωίζεται· ἤπερ ἔπειτα
τῆς ψυχῆς προοίμιον ἢ τὸ μέλημα Διός.

"A estrela, em sua hora, se tinge de branco; e então,
é o prelúdio da alma ou o canto de Zeus."


Ao refletir sobre esse dístico, é possível propor que Anúbio esteja se referindo à hora planetária — um conceito central na astrologia helenística que define momentos do dia governados ritmicamente pelos sete planetas visíveis. Essa interpretação é sustentada pelo uso da palavra ὥρα (hōra), que no contexto astrológico pode indicar tanto uma hora do dia quanto um período sob influência específica de um planeta (hora Saturni, hora Martis, etc.).

A expressão “se tinge de branco” (λευκῇ χρωίζεται) carrega uma ambiguidade rica e deliberada. Por um lado, pode sugerir que os significados planetários, quando manifestos em sua própria hora, tornam-se mais construtivos, virtuosos, ou arquetipicamente puros — mesmo nos casos de planetas tradicionalmente considerados maléficos. Por outro lado, também pode ser uma referência astronômica à aparição visual de um planeta após um período de invisibilidade, ou seja, uma phásis, quando o planeta emerge dos raios do Sol e volta a ser visível, geralmente brilhando com força — “tingido de branco” pela luz que o envolve no céu.

No mundo greco-romano e egípcio do século I–II d.C., a cor branca era símbolo de pureza ritual, favor divino, clareza e luz solar — conotações todas ligadas à harmonia cósmica e à revelação oracular. O branco era usado em sacrifícios, vestes sacerdotais e descrições de deuses benévolos.

Essa riqueza simbólica levanta uma questão fundamental na leitura de textos astrológicos em forma poética: estamos diante de uma imagem criada apenas para provocar beleza e comoção estética, ou há aqui um ensinamento técnico cifrado em linguagem simbólica? No caso do poema de Anúbio, cuja obra integra um corpus astrológico e foi citada por autores como Hephaestio e Firmicus Maternus, a hipótese mais consistente é a de que essas imagens poéticas não estão dissociadas da doutrina astrológica, mas sim traduzem seus princípios por meio de metáforas e alusões sutis. Em outras palavras, trata-se de poesia com função pedagógica e iniciática, cuja beleza serve de veículo para o conhecimento oculto.

Sob essas óticas combinadas, “tingir-se de branco” pode significar que o planeta, ao atuar em sua hora ou ao emergir em sua phásis, revela sua essência plena — ainda que normalmente seja classificado como maléfico. Assim, Saturno ou Marte, em sua hora ou visivelmente manifestos no céu, podem adquirir um brilho especial, uma função construtiva, organizadora, espiritual até. Eles “cantam o canto de Zeus” — ou seja, tornam-se instrumentos do logos divino, parte da harmonia universal.

Dessa forma, o verso de Anúbio pode conter uma verdade astrológica profunda:
O planeta em sua hora, ainda que seja severo ou difícil, pode se tornar uma via de expressão da alma e do destino divino.
Na perspectiva da filosofia neoplatônica, mesmo os corpos celestes de natureza considerada difícil ou maléfica são, em essência, manifestações de um Bem mais elevado. Quando um planeta age em sua própria hora, ele participa mais perfeitamente da Ideia que o governa — torna-se, assim, um canal ordenado do Nous para o mundo sensível. Ainda que Saturno imponha limites ou Marte introduza conflito, ao se manifestarem no tempo que lhes é próprio, esses planetas realizam a vontade do Intelecto divino ao infundir na alma encarnada uma forma particular de ordem, coragem ou sabedoria através das provações da existência. Sua influência, longe de ser um mal em si, pode ser compreendida como o projeto da alma que busca a realização do Uno por meio da expressão de sua natureza celeste.

Portanto, nascer na hora de Saturno não seria sinal de má sorte — ao contrário, poderia apontar para uma alma marcada pela disciplina, pela seriedade e por uma vocação profunda para o tempo e a eternidade, desde que Saturno esteja funcional. Anúbio, com apenas dois versos, nos oferece uma visão visionária: a de que a beleza do cosmos se manifesta quando compreendemos o tempo certo de cada estrela — mesmo as mais sombrias.

No contexto da filosofia neoplatônica — especialmente em Plotino, Porfírio e Proclo — o Nous (νοῦς) é o Intelecto divino, a segunda hipóstase da realidade, que emana do Uno (τὸ ἕν). Ele é o domínio das Ideias eternas e perfeitas, o plano arquetípico que contém todas as formas do ser.

Em termos simples:

  • O Uno é o princípio supremo, acima de toda definição, fonte da unidade absoluta;
  • O Nous é o primeiro desdobramento do Uno, contendo os arquétipos, os modelos inteligíveis de tudo que existe;
  • A Alma do Mundo (Psykhē) emana do Nous e anima o cosmos sensível, transmitindo as formas à matéria.

Aplicado à astrologia:

Quando dizemos que um planeta age como “canal do Nous”, queremos dizer que ele expressa no plano visível uma ideia arquetípica — por exemplo:

  • Saturno, no Nous, é a Ideia da estrutura, do tempo, do limite, da contemplação silenciosa;
  • Marte é a Ideia da ação decisiva, coragem, combate espiritual;
  • Vênus representa a harmonia, a coesão, a beleza que une.

Uma interpretação muito plausível destes dois versos de Anubio é esta. Quando um planeta atua “em sua hora” (como o texto do Anúbio sugere), ele reflete com mais pureza sua Ideia no plano material, mesmo que seja um planeta considerado maléfico. Ele participa mais diretamente da inteligência ordenadora do cosmos, e sua atuação se aproxima de um projeto espiritual — aquilo que a alma escolheu para se desenvolver ao longo de sua encarnação.

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