14 de abr. de 2023

O tédio de se ler material novo (e reflexões astrológicas importantes)

Chega uma hora do processo de aprendizado astrológico em que vai ficando cada vez mais desagradável conhecer o que autores recém lançados pensam. 

À medida em que se conhece muito sobre um assunto, o caminho de menor resistência é ler cada vez menos os livros de terceiros, rumo a um estado de transição no qual se começa a pensar na hipótese de escrever os próprios livros. No ramo da astrologia tradicional, cogitar a escrita de um livro não é nada presunçoso, dada a grande quantidade de material superficial que está no mercado. 

Não me levem a mal. Os autores podem ser ótimos astrólogos, mas a maioria do material produzido é superficial. Se isto é intencional ou não, eu não sei. Será que a maioria dos textos sobre astrologia tradicional contemporâneos são introdutórios a fim de atingir um público maior, formado em sua maioria por leigos ou iniciantes?  

Se esta for a motivação, ela é totalmente desconectada de uma percepção básica da realidade. O povão não quer aprender a interpretar, ele quer ser interpretado, e se entreter com o conhecimento astrológico. Saber, por exemplo se os nativos de Leão beijam bem, ou se Escorpião realmente é bom de cama.

O argumento de vender mais livros também não cola para a astrologia tradicional porque em 100% dos casos os livros são impressos sob demanda, em baixas tiragens, de "editora" pequena (cuja sede física se resume a apenas o quarto de dormir do astrólogo ou sua sala de leitura), que contrata os serviços de uma gráfica especializada em impressões de livros. Há algum tempo já se faz isso no Brasil, quiçá nos States. 

Seja lá qual for a razão para fazer publicar livros de teoria feijão com arroz, esse viés editorial contamina muito os textos de astrologia tradicional, uma área dentro da astrologia que é mais escondida do que a astrologia de signos solares ou psicológica. Com isso, o astrólogo mais experiente sofre...

Saber muito tem consequências negativas inesperadas. Quanto mais você lê sobre determinado tema, mais "reprises" se vê na leitura de um texto recém lançado. As coisas vão ficando repetitivas e, com isso, mais e mais monótonas. A energia psíquica, que seria bem aproveitada no desbravamento de novos conceitos, tem de pagar um imposto caro identificando o que já se sabe e pulando parágrafos, tornando  a leitura saltatória e, consequentemente, cansativa. Você quer saber o que determinado astrólogo pensa sobre uma questão específica mas, até chegar nela, precisa passar por uma avalanche de conhecimento já dominado. 

Contudo, não posso negar que, mesmo passando pelas minhas retinas uma quantidade massiva de conhecimento reprisado, às vezes eu tenho momentos gratificantes ao se ler o material alheio. 

Nesse ramo, alguém precisa reinventar a pólvora para ganhar destaque. A maioria dos aficionados em astrologia tradicional sabem o que está escrito nas fontes mais consagradas. Todo mundo sabe aquele trecho enigmático de Vettius Valens, aquele outro trecho confuso de Ptolomeu, et cetera. Entretanto, o que muda de um astrólogo para outro é como cada um combina e interpreta os diversos elementos interpretativos que constam nessas fontes. Apenas por esse motivo que ainda me é importante saber como pensam outros astrólogos. Eles podem combinar os elementos interpretativos de maneiras diferentes da minha e, ao conhecê-los, posso encontrar soluções para superar bloqueios interpretativos. 

Hoje estou refletindo sobre uma interpretação trivial que li no livro da Demetra George lançado no ano passado, Ancient Astrology in Theory and Practice: A Manual of Traditional Techniques, Volume II, um tijolo de mais de mil páginas que ensina interpretação natal à luz da astrologia helenística, repleto de coisas que eu já sei - o que é uma armadilha cognitiva, pois as coisas que eu já sei são obstáculos na procura do que me é inédito. De qualquer forma, tenho visto neste livro algumas coisas que recombinam elementos já conhecidos de uma forma inédita para mim, além de suscitar algumas reflexões que nunca tinha feito antes. Foi como se descortinasse o óbvio ululante diante dos meus olhos. 

Vou dar um exemplo. Demetra delineou o regente da casa 4 no mapa da Jaqueline Kennedy Onassis. Jackie tinha o regente da 4, ♄, em ♐, no 2º signo a partir do Ascendente. Uma interpretação bem básica pode ser:

Elementos de casa 4 (pai ou mãe, ou imóveis) levam a pessoa a experimentar os significados de ♄ (restrição, negação, ausência) na Casa 2 (posses, modos de se ganhar a vida)

Segundo Demetra, o pai de Jackie praticamente torrou o dinheiro e as propriedades que ela herdaria.

A título de aprendizado, é interessante notar três coisas nessa história. Essas coisas podem ser óbvias mas, quando transpomos a realidade da vida para a representação astrológica, muitas vezes elas são esquecidas na leitura natal. 

Primeira coisa. A herança dilapidada do seu pai não seria a única fonte de renda da sua vida. Ainda que não tenha um emprego, uma pessoa que se casa com um presidente norte americano de família muito rica e, em seguida, com um magnata grego, não ficará desassistida.  Este é um exemplo claríssimo da razão pela qual são necessários vários significadores para um único assunto no mapa. Durante muito tempo, isso me incomodava. Hoje em dia, esta complexidade passou a ser o meu maior aliado. 

De fato, Jackie não conseguiu uma herança paterna boa, mas nunca passou fome e sempre fez parte do jet set. Há que se ter outros significadores para se contar a história inteira porque, se usarmos apenas a história da casa 2, ela estaria em maus lençóis - o que não coopera com os fatos. 

A segunda coisa. O regente da casa 4 na 2 neste mapa conta uma história que não aconteceu da noite pro dia, e que tampouco é permanente. Ela não permaneceu menos rica do seu nascimento até sua morte, e possivelmente, durante parte da sua juventude, ainda havia alguma esperança dela herdar o patrimônio paterno completo, antes de sê-lo espoliado em vida pelo seu próprio pai.  Esta constatação é um outro exemplo de que uma interpretação de um posicionamento planetário do mapa faz o consulente clamar ao astrólogo por uma previsão, ou seja, situar a esta interpretação no tempo, dizendo quando essas coisas vão ocorrer. Entretanto, o abismo entre interpretação e previsão, por incrível que pareça, ainda nos é gigantesco. 

A maioria dos astrólogos não tem nos bolsos uma maneira fácil e instantânea de saber quando os assuntos prometidos por uma posição planetária natal ocorrerá. Acredito que o sonho de todo astrólogo é descobrir uma técnica que dependa apenas do mapa natal e, com apenas uma olhadela rápida nele, se saberia quando os eventos prometidos ocorrerão. Existem algumas tentativas de se fazer isso, como os períodos planetários (Firdaria e Dashas indianos), ou a técnica das ascensões dos signos e dos anos menores do planetas, contida na Antologia de Vettius Valens. Contudo, nem mesmo com tais técnicas se exclui a possibilidade de 1)um evento ocorrer mais de uma vez na vida e 2)de não ser retratado por elas. 

Há um fator que complica esta busca pela simplicidade: o evento prometido pela posição do planeta pode "ocorrer" no tempo e no espaço em várias ocasiões ao longo da vida do nativo, de modos sutilmente diferentes. Essas múltiplas instâncias independem da modalidade do signo do planeta - não, o fato do planeta estar em signo fixo (Touro, Leão, Escorpião, Aquário) não significa que as coisas prometidas por ele ocorrerão apenas uma vez! 

Terceira Coisa. É preciso ter em mente que estados de longa duração (como ser pobre ou rico) foram um dia deflagrados por alguém ou por alguma coisa, num ou em vários eventos, que podem ter até importância histórica, como a escravidão -  o que nos leva a outra constatação: há eventos que precedem a existência do nascido e que a afetam de um modo indelével

Meu pai diz que, não fosse uma maracutaia feita pelos seus tios contra sua mãe, hoje ele seria um feliz herdeiro de uma ou mais fazendas na divisa entre Minas Gerais e Rio de Janeiro - e eu estaria com uma condição MUITO melhor do que estou hoje*. 

Não é a primeira vez que ouvi uma história assim, só que de outra família - o que me permite desconfiar dela ser fictícia ou exagerada. De qualquer forma, ilustra bem meu ponto de vista. Pessoas se encontram em determinados estados por causa de eventos ocorridos aos seus antepassados, eventos engendrados por ela mesma, ou pelas circunstâncias sociais. Somos um corte transversal de um longo processo.

Existem alguns elementos da astrologia que podem representar essas condições pré natais. Antes de procurar na astrologia, porém, a coisa mais óbvia é conhecer os processos históricos nos quais o consulente está inserido, e isso não depende de astrologia, mas de história, geral e pessoal deste indivíduo e da sua família. 

Dentro da astrologia, há algumas coisas pouco exploradas que podem significar esses processos históricos. Astrólogos de inspiração indiana recomendam os nodos lunares. Há trechos nos quais se reputa a lunação anterior ao nascimento como representante secundário dos pais - e eu desconfio que esse ponto possa significar processos pré natais que impactaram o destino do indivíduo. E talvez o ponto mais importante em significar eventos pré natais seja a Casa 12, que indica coisas imediatamente anteriores ao nascimento. Mas essas são especulações.

Notas de rodapé 

*Por outro lado, talvez eu nem existisse, pois sendo rico, meu pai nunca teria sido balconista de uma farmácia em Itaguaí, onde conheceria minha mãe.

Um comentário:

  1. Não sou tão avançada em astrologia clássica, mas eu entendo seu ponto de vista. Eu me sinto assim na magia cerimonial. Não há um bom material de magia tradicional, só há mais do mesmo. Como praticante avançada, é cansativo.
    Agora, sobre astrologia clássica, infelizmente faltam-me recursos para comprar os livros. Talvez eu precise praticar mais magia.

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